15.5.09

A casa mais feia de minha rua


Não é a menor nem a mais simples

Também não é a do casal de velhos
Com o filho maluco
Em contínuo surto
E o muro caído

Não é a da turca maníaca
De mal com a vida
Que sem ter com o que se ocupar
Vigia a vizinhança
E se sente dona do lugar

Nem é a do japonês atlético
Cumpridor de uma disciplina samurai
Que leva seu rothweiler para defecar
Em frente aos portões alheios
Antes da primeira ginástica do dia e após a segunda

Também não é a casa da frente
Que perdeu a fachada graciosa
Desfigurada pela última reforma

Não é a do casal do lado
Cujo rapaz numa noite fria
Durante uma briga
Saiu para a rua pelado
E se postou a chorar sentado na guia
Até atender aos insistentes chamados da amante
E retornar para dentro
Cabisbaixo e soluçante

Nem a casa do lado oposto
Onde uma família de chineses
Não para de crescer
Visivelmente enriquecer
E de formar um país à parte

Também não é a dos irmãos gêmeos
Que já além dos trinta
Se comportam como meninos
Madrugada adentro
Batendo bola na rua
Monotonamente
De um para o outro
Do outro para o um
Já com suas respeitosas panças
Cigarrinho no canto da boca
Camisa do time
E lata de cerveja na mão

Não é a do outro casal de velhos
Que mal caminham ou enxergam
Mas insistem e andar em seu próprio carro
No qual não conseguem entrar ou sair sozinhos
Sempre esbarrando em muros e portões por onde passam
E afugentando a todos em seu caminho

Nem é a da senhora triste
Esposa de um militar de patente
Que fora nunca trabalhou
E se distrai saindo para varrer a calçada
Duas vezes por dia
Para mantê-la a mais limpa da rua
E olhar o movimento

Também não é a do casal de dentistas
Cuja empregada ao final da jornada
De cabelo molhado e alfazema
Se posta no portão da frente
Para uma prosa nordestina lenta
Com o guarda do dia solitário e carente

A casa mais feia da minha rua
Enfeia a paisagem
Foi enfeiada pelo medo
Enfeiou-se por fora
Por ser feia por dentro

Grades
Sobre muros
Sobre câmeras
Sobre holofotes
Sobre choques

É fruto da paranóia que gera o aprisionamento
Que faz dos espaços passagem
Selva sem vida
Guerrilha e abandono
Isolamento
Que nos tira o envolvimento
E mata aos poucos a cidade

3 comentários:

Neide Rigo disse...

Que ótimo! Estão todos aí.
Beijos, n

Rui disse...

Marcos. Adorei o teu post. Ainda mais que conheço algumas das figuras. Confesso que tua vizinhança é mais eclética que a minha que beira o tédio da velhice ou a indiferença dos novos prédios. Que bom que podemos falar tudo o que queremos por estarmos protegidos pelo anonimato dos nossos blogs pouco visitados. Não queria estar na pele da Neide que sempre tem que pensar nos milhares que a visitem todo dia sempre a procura de algum vacilo. Ou será que queria?
Foi muito boa a vomitada na vizinhança.
Abraço
Rui

Anônimo disse...

Éssa casa é mesmo feia Marcos.
Depois da tua primorosa descrição identifiquei-a logo. Acontece o mesmo aqui onde vivo. Erguem fortalezas, dão-lhes nomes adocicados onde se vislumbra sóis ardentes, areias voluptuosas, cheiros apimentados, azuis entorpecentes com palmeiras ondulando ao fundo. Depois, acrescentam nesciamente -«condomínio fechado».
Sei que se apartam dos outros por alguma razão. Mas a minha cabeça abana em sinal de incompreensão. Temo até ficar com esse tique...
Fica bem
Dri