30.6.14

Amores superlativos



São instáveis
Fontes inesgotáveis de desgaste

Afogam-se em sentimentos extremos
E toda sorte de conflitos voláteis

Do tudo ao nada
Quase que num mesmo minuto

Quando está no ápice
Como obra do Divino

“O mais feliz dos mortais”
É como se sente o cretino

Mas logo no momento seguinte
E até por motivo ínfimo

Se pode encontrar o paspalho
Já lambendo o fundo do abismo

Interrogando a si mesmo e cavando
Com as próprias mãos em direção ao Sinistro:

“Porque sempre eu?
O que fiz de errado para merecer isso?”

27.6.14

A imagem que ficou



Foi a de uma flor
Que não abriu e murchou

De um fruto
Que não amadureceu e do pé caiu

Não chegou a alegrar a alma
Com seu perfume

E nem a restaurar forças
Como alimento

De quem plantou
Cuidou e ouviu

Bastou um descuido
Um breve instante

Em que inseguro
Deu as costas e se distraiu

E quando se virou de volta
Não achou mais a porta

Como que em órbita
Viu-se projetado no vazio

Restou a sensação
De que nada concluiu

E que aquele amor
Que julgava fundido ao próprio corpo

Teve que aceitar
Assim que pode

Sem ao menos avisar
Partiu

26.6.14

Adeus, foi esta a última palavra



E não poderia ser outra
Resultou numa dor infinita quando proferida
Precisou de fórcep para ser parida

Não se usa a tenaz como única alternativa
Sem que se tenha uma boa dose de medo
Sem que haja uma ameaça real à vida

Pois não é pequena a chance de sequelas
Interpretações equivocadas
Desespero e mágoas

Quis o destino que em suas histórias
Cruzariam novamente
Caminhos e trajetórias

O tempo não impediu o reconhecimento
E depois de tantas jornadas e batalhas
Havia muito a ser compreendido e relatado

Parearam conquistas e afinidades
E constataram como as guerras lhes tinham dado
Cicatrizes nas almas e transformado as faces

Compararam seus uniformes puídos
E verificaram com enorme tristeza
Que hoje eram de exércitos irreconsiliáveis e distintos

As forças lhes faltaram, estavam cansados
Os pés descalços não suportariam
Caminhar sobre tantos espinhos

Seus reinos eram por demais distanciados
Os obstáculos intransponíveis, excessivos
E não poderiam negar a única verdade: era tarde

Montaram então suas cavalgaduras
Fizeram uma recíproca reverência
Deram vivas aos Deuses e Majestades

Emperdigaram os narizes, proferiram o derradeiro vocábulo
E seguiram viagem tomando direções divergentes
De volta às terras de suas gentes

Onde cada qual teria como reencontrar
Com seus corpos restaurados e corações acalmados
A felicidade a que tinham direito, como tesouro herdado

25.6.14

Na última vez em que bailaram



Estavam tão apaixonados
E dançavam com tanto entusiasmo
 
Que passaram das medidas
E nem repararam
 
Que colecionavam nos pés
Bolhas que já iam virando feridas
 
Mas até nisso viam graça
E como crianças
 
Desprezando a dor
Apenas se riam
 
Ferimentos sempre cicatrizam
Diziam
 
E mesmo que não fiquem visíveis
Viram sinais
 
Tatuagens que levariam consigo
Independente das idades
 
E estas seriam apenas suas
As marcas do amor e da felicidade
 

24.6.14

O silêncio



É o único amigo
A quem se pode confidenciar
Algo tão importante
Como um amor verdadeiro
Que por entre os dedos se deixou escapar

O silêncio

É o único parceiro
Capaz de entender o sentimento
As bocas costuradas
O enclausuramento das memórias
A necessidade de se deixar de sonhar

O silêncio

É o único irmão gêmeo
De quem se pode aceitar conselhos
E que não te condena por se lamentar
Quando considerar que o preço a ser pago
É alto demais

23.6.14

Num momento de constrição



Deus desce à terra
Senta-se ao lado do Filho
Segura-o pela mão e chora

Admitindo o erro
Aconselha-o ao desterro
Partir enquanto há tempo

Afirma em tom resoluto
“Desista, deixa este mundo
Ele não te entendeu direito”

"Parte
Mas parte já
Antes que te destruam por dentro"

18.6.14

É duro lidar com o silêncio



Quando ainda há
Tanto a ser dito

É difícil suportar a dor
Quando não há remédio
E se sabe tão bem o motivo

17.6.14

No me gusta



O incolor
O inodoro
E o insosso

Ser pioneiro em algo
É sempre difícil
E até mesmo doloroso

16.6.14

Espectros não farão morada


 
No oco da minha cabeça

Aonde aranhas
Cobras e lagartos
Não se sentiram abrigados

Foi criado o espaço
Pano branco sobre montes e vales
E um horizonte não delineado

Paleta de cores em poças distintas
Palavras soltas ao vento
Melodias não pautadas

Ferramentas à espera de artistas
Cenário revirginizado
Útero a ser ocupado

13.6.14

Não cabem mais plantas em nosso jardim



Apelo para o bom senso
Pare de trazê-las enquanto é tempo
Não as faça mais multiplicar
Façamos com as que já temos um manejo

A disputa entre elas é inglória
As mais fortes
Com sua sede de vitória
Espalham-se e tendem a predominar

Algumas mais atrevidas
Inconformadas com as condições oferecidas
Escalam telhados e muros
Em busca de outros mundos

Não querem ser agressivas
E sabem que mais cedo ou mais tarde
Ainda que não acabem por vencidas
Ferirão e sairão feridas

Mesmo as mais frágeis
Não estão assim tão desassistidas
Quando seriamente ameaçadas
Acionam outras estratégias de sobrevida

Se veem possibilidade de não vingarem
Disseminam sementes lançadas, grudentas ou aladas
Transferindo para outras searas
Sua linhagem, sonhos e expectativas

11.6.14

Cães de pequeno porte



Muitas vezes
Não dimensionam bem
O tamanho de sua sorte

São voluntariosos
Ardidos e intolerantes

Não se apercebem
Dos perigos que correm

Quando encaram
Alguns primos maiores
E suas bocas enormes

10.6.14

Não quero



Que me dirijas mais
Qualquer palavra

Teu canto de sereia
É feitiço

E quando me encontra
Me embala

É difícil resistir
A esta serenata

Se queres ficar
Fica

Mas vem
Senta e cala

9.6.14

O vento



É o operário do tempo
Remodela montanhas
Levanta o pó da estrada
Carregando consigo
Sonhos efêmeros
Lamentos silvados
E cantos de felicidade

Versos livres
Vividos daquilo que um dia
Já foi o hoje
Fuga para longe
Veículo sem controle
Confronto contínuo
Com os laços da realidade

O amor
É a própria essência do vento
A força que gera o movimento
O sopro que anima
Fogo-fátuo inocente
Que não pode ser cultivado
E se apaga com facilidade

O passado que uniu
Também é capaz de afastar
Páginas escritas com lágrimas
Engessam lembranças
Estão fincadas em outro terreno
Não reconhecem mudanças
Acabam míopes frente a uma nova verdade

6.6.14

Tem compaixão



Não excedas no poder
Que tens nas mãos
Não me peças
O que eu não posso te dar
Pois jamais te diria não

5.6.14

Teus dias são curtos



As noites longas
Profundas

Os meus extensos
E as noites rasas, curtas

Enquanto sonhas
Atendo

Enquanto resolves
Descanso

Lembranças colorem
Encontros imaginários

Sonhos
Que são vontades

Pensamentos
Mágicos
 
Cometas que brilham
Prata polida

Momentos raros
Sentimento alimentado

4.6.14

Como confiar em alguém



Que em nada muda
Não importando
A estação do ano
Ou a fase da lua?

3.6.14

Não é fácil ir



Deixar-te
Partir

Não é fácil ficar
E não te completar

Lutar implica em sofrer
Não lutar também

Como não disseminar a dor?
Como recuperar a paz?

É injusto o ônus
Que se tem que arcar
 
Quando tanto já se paga
Por não poder amar

2.6.14

Aderbal



Era um cara normal
De dia
Trabalhava como uma mula
De noite
Era noticiário na TV
Novela e Planeta Animal

Numa certa manhã
Aderbal acordou diferente
Tinha sede de sangue
Fome de gente
Não se satisfez com as habituais
Bolacha Maria
Leitinho gelado
E queijo quente

Deixou tudo sobre a mesa
Saiu às ruas
Olho arregalado
Instinto assassino
E no estômago
Um vazio desesperado

Logo na primeira esquina
Encontra uma prima
Moça bem constituída
Peitos fartos
Coxas grossas
Olhar lascivo de rapariga

Quando a viu
Não se inibiu
Saltou sobre a parenta
E sem dar atenção aos predicados
Abocanhou logo o pescoço
Arrancando-lhe numa só dentada
Jugular carótida e parte da escápula

A morte foi imediata
Arrastou o cadáver até sua casa nas proximidades
E com uma faca bem afiada
Separou o conjunto em pequenas partes
Congelou tudo
Para comer cada pedaço no momento apropriado

Foi aí que teve a ideia de compartilhar a comida
Com os vizinhos da aldeia
E chamou-lhes para um churrasco
Pedindo que trouxessem o vinho
E algum complemento para o repasto

Vieram muitos
Se fartaram
E depois de ficarem suficientemente embriagados
Aderbal foi chamando
Um a um para o canto
E atacando seus pescoços imaculados

Ao fim do trabalho
Tinha aumentado significativamente
Seu provimento de cadáveres
Considerou isso como um bom investimento
E animado com tamanha fartura
Não hesitou repetir o evento
Convidando toda a freguesia de sua banca de frutas

E assim como um homem de boa vontade
Que se propunha a alimentar toda a cidade
Durante as comemorações da Semana Santa
Justificou a presença da carne
Alegando que era importada do Vaticano
E que o lote recebido
Tinha sido pelo próprio Papa benzido

Marcou para o dia seguinte a festividade
E tratou de iniciar os preparativos
Para uma grande comilança
Pois agora acreditava
Ser seu dever sagrado
Sua missão
Alimentar toda a população
E cumpriria sua sina
Nem que fosse com o sacrifício da própria vida

Escalou na igreja com o vigário
Um grupo de voluntários
Para organizar a multidão
E distribuir a comida de forma organizada
No dia da reunião

Duas toneladas de arroz
Uma de feijão
E todo o necessário para o ensopadão
Não se esqueceu nem mesmo da cenoura
Batata e pimentão

Depositou na grande panela
Os acompanhamentos
E todas as peças que com cuidado estocou
Temperou com esmero
E antes avisou aos incautos
Que haveria um ingrediente surpresa
Mas que não seria a sobremesa

Quando tudo já estava quase pronto
E antes de que alguém chegasse para dar início ao encontro
Subiu na escada que usou para alcançar
E mexer a gororoba
Tirou toda a roupa
Saldou a São Pantaleão
E saltou incontinente para dentro do imenso caldeirão

As pessoas foram chegando
Comeram o quanto quiseram
Encantaram-se com a riqueza de sabores
Mas estranharam a ausência do anfitrião
E isso serviu para reforçar ainda mais o mito
Que já estava em construção:

“Aderbal o gentil cidadão
Aquele que não mediu esforços
Para sanar a fome do seu irmão”

Retornaram para suas casas
Felizes e saciados com a farta refeição
Aderbal nunca mais visto
Foi homenageado com busto e placa em estação
Seu nome foi cedido à “Casa de Repouso Aderbal o Bondoso”
Entidade duramente mantida por um humilde religioso
E que assim teve suas necessidades melhor atendidas
No volume de doações recebidas

Só um mistério ficou para sempre no ar
E ninguém nunca soube ao certo como responder:
Qual teria sido o ingrediente secreto
Que Aderbal usou e não deixou a ninguém transparecer?

A polêmica cresceu
E autoridades em gastronomia
Foram forçadas a acreditar
Que o desconhecido tempero
Uma vez incorporado ao prato
Deve ter sido o responsável pelo sabor tão inusitado

Inúmeros chefs foram chamados
Para tentar decifrar e reproduzir o preparado
Mas apesar dos esforços e das inúmeras tentativas
Nunca se conseguiu a receita definitiva

E a hipótese mais aceita
Baseada no princípio da incerteza
É de que a doação despretensiosa e plena à humanidade
Possivelmente dá nome e identidade
Ao misterioso elemento surpresa