27.10.15

Amador



Nasceu com uma doença rara
Não sentia dor
Cresceu cercado de cuidados
Sem saber como evitar
Os frequentes incidentes e percalços
Que lhe causavam ferimentos e infecções

Muito cedo saiu de casa
Em busca de emoções
Desconhecia o medo
O por isso sempre se arriscava
De modo inconsequente
Nas mais perigosas situações

Como se não bastasse
Já longe da familia
Ainda descobriu que não tinha sentimentos
Em seu repertório interior
Não existiam amor, saudade, raiva, felicidade
Na realidade era um ser oco por dentro

As múltiplas amputações que lhe aconteciam
Não lhe causavam vergonha ou constrangimento
Expunha-se sem se incomodar
Às vistas de toda a comunidade
Provocando-lhes repulsa
Diante de tanta atrocidade

Já não tinha dedos
Orelha era apenas uma
Alguns membros nem mesmo lhe estavam inteiros
Mas ainda assim com uma certa facilidade
Conseguia arrastar-se pelos passeios
Não via nisso nenhuma anormalidade

Como uma aberração encurtada
Propôs a si mesmo um desafio
Iria desmanchar-se até o limite do auto reconhecimento
E ao atingí-lo voluntariamente ultrapassaria a linha
Busacndo acesso ao que existisse
Do outro lado do que é conhecido

Aumentou sua exposição às adversidades
E as amputações continuaram acontecendo
Já não tinha mais as pernas
E dos braços apenas um pequeno toco havia
Mas apesar de radicalizar
Ainda sabia quem era e se percebia

Aí então resolveu lançar-se
Numa empreitada definitiva que incluia a autofagia
Passou a morder e comer a própria lingua
Fez isso também com lábios e bochechas
Espetou os olhos numa chave de fenda
E massacrou o crânio embaixo de uma britadeira

A última vez que foi visto
Resumia-se a uma esfiapada bola de carne
Rolando morro abaixo numa das ruas do bairro
Mas mesmo assim foi reconhecido
E pelo que consta nos ultimos registros
Ainda não se sabe se já conseguiu alcançar seu objetivo

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